A lenta escalada das mulheres na universidade

Rafael Sanhudo
10 min readJun 22, 2022

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Embora figurem a maioria no ensino superior em Porto Alegre, elas ainda são a minoria em cursos dominados por homens

Por Emilena Gonçalves, Gabriela Rodrigues, Lisiane Klutzke, Maria Eduarda Machado e Rafael Sanhudo

A mudança acontece pouco a pouco, mas as mulheres persistem nos seus objetivos. Foto: Maria Eduarda Machado/Rafael Sanhudo

No ensino superior, é comum ouvir que determinados cursos são de homem e outros de mulher. Em Porto Alegre, as mulheres são 54,4% dos alunos de graduação, porém, essa não é a realidade em todas as áreas. Educação Física, Ciência da Computação, Engenharia Civil e Engenharia Mecânica estão na lista dos cursos favoritos dos homens, segundo o MEC. Nas Instituições de Ensino Superior (IES) de Porto Alegre, o número de mulheres nos referidos cursos é muito pequeno e apresentam pouco sinal de melhora.

Gráfico: Indicadores do número de matriculados nos cursos de Ciências da Computação, Educação Física, Engenharia Civil, Engenharia Mecânica, entre os anos de 2016 e 2020.

É como se a quantidade ínfima de futuras profissionais nessas áreas estivesse fadada à estagnação. Nossa equipe analisou dados dos cursos citados acima dos anos de 2016, 17, 18, 19 e 20, na capital gaúcha, e o resultado não foi surpresa, mas ainda assim desaponta, o maior avanço foi menor que 3%. Esses indicativos mostram uma mínima evolução em direção à igualdade de gênero nos referidos cursos, dentro das instituições porto-alegrenses.

Gráfico: Indicadores da evolução do número de mulheres nos cursos de Ciências da Computação, Educação Física, Engenharia Civil, Engenharia Mecânica, nos anos de 2016 e 2020.

Igualdade essa que sempre foi muito defendida pelos movimentos feministas, que transformaram a sociedade e garantiram, inclusive, o direito dessas mulheres estarem dentro das universidades. Segundo Giselle Fetter, doutora em linguística, “essas conquistas permitiram a ocupação de espaços que antes eram majoritariamente ou unicamente masculinos”.

Porém, ainda existe uma divisão na sociedade que atribui às mulheres determinados espaços, características, comportamentos, além de difundir a ideia de deixar o homem fazer as “coisas de homem”. “É nesse sentido que vemos a força do feminismo em defender, mostrar e possibilitar a diversidade e a inclusão das mulheres em todas as esferas”, explicou a doutora. Dentre os quatro cursos, o mais “equilibrado”, com mais diversidade, é o de Educação física, com 33,26%, do corpo discente feminino já em 2020, último ano com documentos disponíveis no portal do MEC.

“Educação Física é muito massa para ficar sendo dividida entre homens e mulheres”

Além de ter a maior inclusão feminina, entre os analisados, este é o curso com maior aumento no índice de mulheres em relação aos homens: 2,84%. Número inexpressivo, porém, importante considerando que as informações coletadas dos outros cursos foram ainda menores.

Gráfico: Indicadores do progresso do número de matriculados no curso de Educação Física, entre os anos de 2016 e 2020.

Esses dados são apenas reflexos da sociedade em que vivemos. No caso da Educação Física, é comum que incentivem os meninos, quando crianças, a praticarem esportes, pois correr na rua e jogar bola são “coisas de menino”, enquanto as meninas devem brincar de boneca e cuidar da aparência.

Theresa Machado Flores, 25 anos, professora de natação, formada em Educação Física pela PUC-RS, sempre seguiu em via contraditória a esses padrões. Ainda na escola, ela se infiltrava no meio dos “guris” para jogar vôlei e futebol, já que as meninas nunca queriam. “Antigamente os meninos sempre se empolgavam mais na educação física, então eu queria jogar, participar junto com eles, porque a menina tem aquela função de não querer suar, estragar a unha, o cabelo”, comentou.

A professora sempre adorou esportes e por isso decidiu fazer disso sua profissão, sem ligar para o que iriam pensar ou falar. “Eu nunca pensei que educação física fosse só pra homem, era isso o que eu queria desde criança, então eu fui atrás independente do que os outros falavam”, ressaltou. E ela se jogou, e mesmo que a maioria masculina fosse nítida nas disciplinas, isso nunca foi um problema.

Gráfico: Indicadores do número de mulheres no curso de Educação Física, comparando os anos de 2016 e 2020.

“Tinha cadeiras com 20 alunos e três eram mulheres. Mas os professores sempre acolheram todo mundo independente do gênero”, contou Theresa. E, diferentemente de outras meninas entrevistadas, sua passagem pela universidade foi livre de preconceitos e misoginia. “Nunca sofri nenhuma discriminação, ou fui prejudicada, por nenhum professor ou aluno, por ser mulher”, afirmou.

Essa realidade infelizmente é raridade e por isso o direito da mulher de estar onde bem entender deve ser exercido sem hesitação. “Se é algo que a gente gosta, a gente tem que ir atrás independente da desigualdade, tem que se jogar porque vale a pena. Educação Física é muito massa para ficar sendo dividida entre homens e mulheres”, finalizou.

“Estamos tendo o nosso espaço respeitado a cada dia”

No caso de Jessika Oliveira, 29 anos, estudante de Ciência da Computação na Fadergs, ela afirma que no início do curso se surpreendeu com o alto número de mulheres nas disciplinas iniciais, mas, mesmo assim, disse que em uma disciplina foi a única mulher, o que exemplifica os dados do ano em que ela ingressou na instituição. Em 2020 o número de mulheres matriculadas no curso era 13,31%, enquanto o de homens foi de 86,69%.

Gráfico: Indicadores do número de mulheres matriculadas no curso de Ciência da Computação, comparando os anos de 2016 e 2020.

A baixa representatividade dentro da sala de aula também é vista na docência, Jessika comenta que em dois anos e meio na instituição teve apenas uma professora do sexo feminino, o que reforça ainda mais o estereótipo da divisão por gênero dos cursos de graduação.

Podemos analisar a diferença entre 2016 que as mulheres ocupavam 12,54% e os homens 87,46% das matrículas no curso e compará-lo com 2020 onde houve um aumento de apenas 0,77% da presença delas dentro da sala, o que pode ser considerado pequeno, mas é significativo, visto que o montante vem aumentando e não diminuindo.

Gráfico: Indicadores do progresso do número de matriculados no curso de Ciência da Computação, entre os anos de 2016 e 2020.

A aluna, de forma esperançosa ainda destaca: “Percebo que apesar de ser um curso com a maioria masculina, nós, mulheres, estamos tendo o nosso espaço respeitado a cada dia. Ficando mais evidente que podemos estar onde a gente quiser”.

“É comum ouvirmos comentários desagradáveis quando entramos no canteiro de obra”

“O principal que nós mulheres passamos no curso de engenharia, é o fato de ter que provar em dobro sua capacidade”. A fala da Engenheira Civil Brenda Soares, de 24 anos, sintetiza o sentimento de muitas mulheres. O fato de ser uma das poucas mulheres em sala de aula, parece ser intimidador. “Nas outras engenharias era uma ou duas meninas no meio de trinta homens, na civil tinha mais mulheres, mas a maioria ainda era de homens”, completa.

Gráfico: Indicadores do número de mulheres no curso de Engenharia Civil, comparando os anos de 2016 e 2020.

Da lista do MEC de cursos favoritos dos homens, a Engenharia Civil é a segunda com maior equidade, com mulheres ocupando 27,5% das vagas preenchidas. Em cinco anos não houve muito progresso, como se pode observar no gráfico, com aumento insignificante de 0,3%. Nesse cenário, apesar de não ter notado diferença de tratamento, o machismo estrutural se fez muito presente.

Brenda relata que na Unisinos, onde estudou e se formou, não notava uma diferença de tratamento por ser mulher, mas que frequentemente ouvia piadas machistas de alguns professores. “Exemplos machistas que não cabem mais, aí o professor fazia as piadas e todos os homens da sala riam; situação que aconteceu mais de uma vez e me incomodou”, relembra a engenheira.

À frente da sala de aula, o sentimento não é muito diferente. A professora de engenharia civil Débora Bretas vem de duas gerações de professoras, a mãe e a avó, mas não enxergava essa representatividade feminina. “Por diversas vezes cursei um semestre inteiro com nenhuma ou apenas uma professora nas disciplinas”, apesar disso, nunca passou por nenhuma situação de machismo mesmo sendo ser mulher na engenharia, tanto como aluna quanto como professora.

Débora defende que as mulheres formadas têm um papel fundamental na conquista de espaço, seja incentivando outras mulheres ou mesmo tornando o processo delas mais leve. Além disso, conta que enxerga cada vez mais mulheres nos corredores, o que a deixa empolgada com o futuro: “Nosso potencial como profissional é enorme”.

Gráfico: Indicadores do progresso do número de matriculados no curso de Engenharia Civil, entre os anos de 2016 e 2020.

O maior desafio é encontrado na área profissional, tanto para Brenda quanto para Débora. “É comum ainda infelizmente ouvirmos comentários desagradáveis e olhares atravessados, principalmente quando “botamos a mão na massa” e entramos no canteiro de obras”, enfatiza a professora.

As falas de ambas as profissionais evidenciam uma realidade em comum, que apesar de uma vida acadêmica tranquila na engenharia civil, não há como escapar da visão machista de muitas pessoas, principalmente no mercado de trabalho. Os dados de matrículas de mulheres no curso dão lentas escaladas, o que representa bem a nossa sociedade.

“O primeiro passo é sem dúvida ocuparmos esses lugares, mostrarmos nossas capacidades e agir de forma natural sem pré-conceitos”, entusiasma Débora com sua visão otimista. “Eu gosto de imaginar que em algum momento vou inspirar mais mulheres a se tornarem engenheiras e professoras e que elas vão inspirar outras mulheres”, completa.

“Eu era a única mulher da turma”

Avançar na conquista de espaço para mulheres nos cursos superiores considerados masculinos, em Porto Alegre, é um desafio que não está perto do fim. Um pequeno progresso é considerado uma vitória, porém às vezes ele nem acontece. Quando se trata de engenharia mecânica, a realidade feminina fica ainda mais difícil.

Gráfico: Indicadores do número de mulheres no curso de Engenharia Mecânica, comparando os anos de 2016 e 2020.

Elas figuram menos de 7% do corpo discente da engenharia mecânica, número esse que sofreu uma pequena diminuição com o passar dos anos. “Eu era a única mulher da turma, eu não tinha muita interação social, só com meus colegas de grupo. Nunca fui chamada para os churrascos e as demais atividades típicas dos meninos”, relatou Keila Mercedes, de 31 anos, formada em 2017 na Faculdade Anhanguera.

Formada em Letras, já não se encontrava satisfeita com a primeira graduação, então escolheu a mecânica, pela facilidade em lidar com números, amor por gráficos, equações mais complexas e justamente por saber que seria algo completo. Porém, não imaginava que viveria uma realidade tão diferente. “Eu achava que teria colegas mulheres, que eu teria a oportunidade de fazer estágio se eu tivesse um bom currículo, que seria a minha capacidade que iria me direcionar para a vida profissional, mas foi tudo diferente”, desabafou.

Em sala de aula, sempre foi tratada com indiferença. Enquanto nas aulas práticas todos poderiam operar um centro de usinagem, por exemplo, a estudante só poderia fazer anotações, pois não a deixavam operar as máquinas. “Nem me perguntavam se eu queria colocar os parâmetros na máquina, já me davam a ficha de anotações”, revelou.

Essa indiferença não vinha apenas de seus colegas, mas dos professores também.

“Homens no geral tinham mais vantagens com os professores, tomavam café juntos, falavam sobre futebol; as interações intersociais existiam entre eles, comigo não”.

Não bastasse a faculdade, o período de procura pelo primeiro estágio também foi complicado, mesmo com um currículo bom, qualquer homem com um currículo inferior, conseguia levar vantagem na seleção. O estágio só chegou, quando todos os colegas meninos já estavam encaminhados, a vivência no chão de fábrica não veio e Keyla teve que se contentar com a área administrativa para os estágios obrigatórios e não obrigatórios. “Isso marcou muito, eu nunca reprovei, tinha vários cursos de extensão e fui a última a conseguir um estágio”.

De fato, não existe uma fórmula exata para aumentar o percentual de mulheres nesses cursos, mas existem incentivos possíveis, como empresas contratando-as para mais cargos de liderança. Giselle Fetter, doutora em linguística, fala que “o incentivo às meninas desde a infância e a promoção de atividades de extensão universitárias” também são formas de mudar esse cenário.

A pseudo maioria das mulheres na faculdade

Quando se fala em maioria feminina no ensino superior, podemos dizer que na verdade são cursos que atingiram a igualdade de gênero tão almejada. O curso de direito, aquele com mais alunos matriculados no Brasil, segundo um levantamento feio pelo portal Guia do Estudante, por exemplo, apesar de ainda ser considerado um curso dominado por homens pelo MEC, é um dos cursos com maioria de estudantes mulheres em Porto Alegre. Os dados levantados pela reportagem apontam que 53,5% dos estudantes são mulheres.

Gráfico: Indicadores do número de mulheres no curso de Direito, comparando os anos de 2016 e 2020.

O último Censo do IBGE (2010) mostra uma população de 86,5 homens para cada 100 mulheres na Capital do Rio Grande do Sul. Fechando um pouco mais o recorte, a fim de saber se os homens teriam população maior, quando observamos apenas as pessoas de 15 a 29 anos, hipoteticamente em idade para estar entrando e/ou finalizando o ensino superior no período analisado — 2016 a 2020 — essa razão diminui para 97 homens para cada 100 mulheres.

Com isso percebemos que a população Porto Alegrense é majoritariamente feminina, o que significa que aqueles três pontos percentuais a mais de mulheres no corpo discente do curso de Direito representam na verdade a igualdade de gênero, não uma maioria propriamente dita, principalmente quando comparado com os cursos que são predominantemente masculinos.

Vitória Schuh, de 25 anos, Bacharel em Direito, estudou entre 2014 e 2019 na Feevale e relata que nunca sentiu isso ao longo do curso. Embora sempre tenha visto um equilíbrio entre homens e mulheres, a mesma conseguiu notar um aumento ao longo dos anos. “Dá para dizer que em certo momento, o número de mulheres foi aumentando, mas tinha um equilíbrio, foi um aumento no geral, não tão específico, mas com o decorrer, fiz cadeiras que tinham mais colegas mulheres, do que no início”, afirma.

Gráfico: Indicadores do progresso do número de matriculados no curso de Direito entre os anos de 2016 e 2020.

Mesmo que não tenha visto dentro da faculdade uma distinção, fora dela encontra uma realidade diferente. Pensando no cenário geral, sempre se inspirou em professoras durante o curso e enxergava a importância delas, não só do lado profissional, mas na vida pessoal também, pois elas nunca abaixavam a cabeça. Além disso, o recado que a Bacharel deixa, é justamente esse.

“Não podemos baixar a cabeça, temos que sempre lutar por nosso espaço, independente de onde estiver e que a gente faça cada vez mais pessoas entenderem, que podemos estar ali, temos que fazer, independe do que falarem ou acharem.”

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Rafael Sanhudo

Estudante de Jornalismo. Projeto de poeta. Curioso por esse mundo.